O comodoro amigo
Mais um exemplo de como Miguel Esteves Cardoso escreve como ninguém e diz o que todos gostaríamos de ter pensado.
"Tinha sido contaminado pelo futebol. O futebol tinha saído da jaula fortificada onde eu o guardo e tinha conseguido invadir o jardim maximum security da minha vida. A minha mãe já me tinha avisado. Quando nós éramos pequeninos e ela passava tempo de mais connosco, falando criancês - aquela língua delicodoce e cheia de diminutivos que os pais usam para dar ordens e ensinar coisas aos filhotes -, acontecia-lhe continuar a usar a mesma língua quando estava com adultos. Durante um cocktail, aconselhava um comodoro americano que acabara de lhe ser apresentado a "não vai beber esse uisquizinho todo de uma vez, pois não? Parece muito bom e fresquinho, cheio de pedrinhas de gelo, mas o álcool faz mal ao figadozinho! E nós não queremos que isso aconteça com o comodoro, pois não? Não! Claro que não queremos, porque o comodoro é um bom comodoro e quer um dia ser almirante, não é?" No criancês, o adulto geralmente responde às suas próprias perguntas e à criança cabe fazer que sim ou que não com a cabeça. O futebolês não é muito diferente. Pergunta-se: "Achaste que foi fora-de-jogo?" E segue-se logo com a resposta: "Aquilo nunca foi fora de jogo!" (O futebolês é tão exageradamente agressivo e discordante como o criancês é ternurento e unanimista)."
in Público (12/07/10)