E porque quem tenha lido o último post pode dizer "Credo, para a Joana o natal é só consumismo" (exemplo aplicável unicamente à minha avó, pessoa que usa a palavra credo), resolvi escrever as linhas que se seguem. Para vos provar que não, não é só de compras que se trata. O Natal na minha família é também:
- a minha avó a queimar o arroz e a debater-se com um peru maior que ela (depois de ter abandonado, tristemente, quanto a mim, a ideia peregrina de fazer este ano "uma instalação de peru, com os bifinhos de peru que for comprando todos dispostos, a imitar um peru verdadeiro").
- a minha (mesma) avó a ficar sem electricidade em casa e a cozinhar à luz das velas, enquanto toda a família discute, numa espécie de pimponeta-pitá-pitá-pitucha-plim à distância, para ver quem vai lá ensinar à matriarca o que é um quadro e um disjuntor.
- os meus pais a discutirem com o meu tio em torno da questão "quem é mais porco: o povo espanhol ou o português?".
- os meus pais, o meu tio, a minha tia e o meu irmão a discorrerem sobre bancos, banqueiros, quiçá alguns bancários, e crise financeira em geral.
- a minha mãe a dar embrulhos às pessoas cujo conteúdo desconhece porque, tal como confessa facilmente "são sobras do ano passado, achei que era outra coisa..."
- o meu pai a correr a rua toda para descobrir a solução doutro importante debate: "é preciso ou não comprar selo do carro?" (todos os pretextos são válidos para abandonar o lar em noite de consoada... há quem diga que vai comprar cigarros, mas ele já nem fuma)
- eu a discutir com a minha mãe porque umas botas que uso de ano a ano desapareceram... para cinco minutos depois vir a saber que as deitou fora pensando que eram outras.
- a minha tia, que em tempos era um Pai Natal em quem eu acreditava piamente, ficar com um sono descontrolado depois do primeiro (e felizmente último) gin tónico, mas querer mostrar, ainda assim, os seus dotes para o fado-canção. Felizmente costumamos conseguir demovê-la.
- o meu irmão a dar várias voltas à casa por ter perdido, à vez, os comprimidos para a garganta, a carteira, o telemóvel ou o maço de tabaco (pelo menos este ainda tem pretexto se quiser ir à rua e nunca mais voltar).
- a minha avó a protagonizar cenas de enorme tensão com todos os familiares, quando encena o seguinte excerto shakesperiano (com os embrulhos na mão): "porque é que fizeste uma coisa destas?", "porque é que foram gastar dinheiro comigo?", "eu não tenho presentes à altura para vocês, que traição".
E é assim. Todos os anos. Com algumas variantes. O ano passado tinha ficado o arroz, queimado que estava o peru. A discussão talvez tenha sido sobre a guerra no Iraque. A minha tia talvez tenha bebido martini, o meu irmão talvez tenha perdido comprimidos para o estômago e não para a garganta. Mas a tradição ainda é o que era. O meu pai continua obcecado com a urgência de deitar fora todo o papel de embrulho, como se ele fosse auto-destruir-se em três segundos. A minha mãe ainda faz borrego em massa folhada (o "em" aqui é importante), ignorando toda e qualquer tradição de bacalhau com batatas. E eu continuo a estar acordada até às tantas. Antigamente era a montar as peças todas dos jogos que recebia. Agora é a escrever aqui, o que é basicamente a mesma coisa. Se bem que eu trocava isto por um bom e velho Mototope, um Dragabolas, um Operação, um Crocodilo no Dentista ou as clássicas plasticinas da Play Doh.
No fundo, o Natal continua a ser apenas e só consumismo. Mas como os presentes não nos ocupam tanto como isso, com manuais de instruções e regras de jogo, temos de desenvolver teorias em torno do espírito natalício. Coisas como harmonia familiar e assim. E a verdade é que ao fim dumas garrafas de vinho e duma quantidade de doces superior à permitida por lei, qualquer teoria que queiram vender-nos parece muito válida. Desde que não nos obriguem a levantar do maple. Maple, outra homenagem à minha avó. O arroz queimou-se mas não faz mal. Foi Natal na mesma.