Consta que na véspera do meu nascimento, a minha mãe viu a "Febre de Sábado à Noite" na televisão. Adorava que isto fosse um boato infundado que eu pudesse agora desmentir, mas parece que é mesmo verdade... Portanto a primeira personagem televisiva com que me relacionei foi o Tony Manero (empregado numa loja de tintas de dia, rei da dança de noite). Conta-se que a cesariana terminou comigo a dançar ao melhor estilo John Travolta. Esta parte felizmente já é mito urbano (até porque aqueles movimentos rápidos, feitos por um bébé ainda cheio de placenta, eram capazes de sujar muita coisa!).
A partir do dia 3 de Janeiro de 1986, a televisão esteve sempre lá. Ou melhor, eu estive sempre onde havia uma televisão. Lembro-me que não havia nada mais glorioso do que estar no meu bacio, de olhos fixos na TV. Que luxo, não ter de interromper qualquer visionamento para ir à casa da banho, fazer "o meu chichizinho" imortalizado por João Baião, anos depois, no "Big Show Sic". Ficar doente era sempre uma alegria, porque era sinónimo de ter uma televisão emprestada no meu quarto, e entre medições de febre e antibióticos, poder consumir doses maciças de "Denver, The Last Dinosaur" ou dos "Gladiadores Americanos" (isto com alguns anos de distância, mas a alegria era a mesma).
Se não houvesse televisão, não teria tido direito a um comovente momento de amor fraterno, quando o meu irmão ligou para a RTP para defender os meus direitos, exigindo-lhes que passassem o "Babar", como prometido na programação. Sem televisão, podíamos esquecer os piqueniques em família, na sala, aos domingos, a ver o "Palavra Puxa Palavra". Há famílias que vão fazer merendas em Monsanto, a minha ia comer ovos quentes para a frente do António Sala. E bem agradável que era. No Verão, trocávamo-lo pelo Eládio Clímaco, enquanto tínhamos os pés dentro de alguidares de água fria e víamos os Jogos Sem Fronteiras. Quando chegava o Natal desligávamos a televisão, é certo. Mas apenas para brindar a família com uma performance dos irmãos Marx (trocadilho parvo com Marques), claramente inspirada nos programas do Herman José.
Nessa altura, a maior relíquia que guardava no meu quarto era uma televisão portátil, com uma antena tipo telefonia, que tinha saído na revista da Proteste e que o meu avô me deu, mal sabendo o tesouro que ali estava. E como foi útil nos meus castigos! Sempre que incorria nalguma asneira, coisa que acontecia com regularidade - já se sabe como é, os maus exemplos da televisão! - a pena era ficar sem televisão. E lá ia eu, orientando a pequena antena da TV portátil na direcção da janela, na esperança de perceber alguma coisa do que se estava a dizer no "Não Se Esqueça da Escova de Dentes" da Teresa Guilherme. Porque no dia seguinte, na turma da 4ª classe, todos iam falar do concorrente que apareceu nu. E saliento que aqui não era de todo a nudez masculina que me interessava, mas sim o perigo de poder perder um evento televisivo. Quando chegava ao intervalo, a televisão continuava pelo recreio, quando brincávamos ao "Chuva de Estrelas" (felizmente sem José Nuno Martins), ao "Juego de La Oca", uma tendência muito moderna, vinda da nova TVI, ao "Furor" e às "Marés Vivas" - o escorrega era a torre de controlo.
E havia lá melhor coisa do que chegar a casa ao som do genérico da Rua Sésamo. E ficar ali no sofá vendo os desenhos animados da Vera Roquete. E o orgulho incontido que foi quando ela afixou na sua parede o desenho que eu tinha enviado, um Tom Sawyer com um traço inconfundível? Memorável.
E não se pense que isto é um daqueles fenómenos que passa com a idade. Estamos a falar de uma doença complexa, não de uma mera enurese! Felizmente nunca afectou o meu rendimento escolar, porque lá fui conseguindo fazer um trabalho de português baseado no "Juiz Decide", e outro no "Sofá Vermelho", mais um de História imitando José Hermano Saraiva e os seus "Horizontes da Memória." As noitadas de estudo, essas, eram passadas na companhia de um bom "Nunca Digas Adeus", com Lídia Franco a fazer de actriz de novela mexicana. É verdade que não fiz a "quarta classe antiga" que muitos gabam, confesso que não sei estações de comboio e apeadeiros de cor, mas consigo reproduzir cenas de produtos televisivos tão ilustres como "Farmácia de Serviço" (uma coisa dobrada em espanhol), "Trapos e Companhia" (sobre o fascinante mundo das costureiras), "Carrossel" (novela venezuelana com um branco rico e um pretinho pobre), "Dá-lhe Gás" (os primórdios de Jorge Gabriel) ou o "Médico de Família", um appointment viewing no verdadeiro sentido do termo. Mesmo que alguém falecesse numa terça-feira à noite, eu não ia ao funeral sem ver a mais recente discussão da Lucinda com o avô Zé.
Por sorte, a minha passagem pela Universidade não se transformou num enorme "Doutores e Engenheiros", com Nuno Graciano gritando a plenos pulmões "miséria!", até porque não me desloquei muitas vezes à faculdade. Era difícil saír a meio de um "Olá Portugal" ou de um "SIC 10 Horas", deixando para trás Manuel Luís Goucha ou Fátima Lopes para ir assistir às prelecções de Maria Augusta Babo sobre o palimpsesto. Temos de reconhecer que não pode competir com a espectacularidade de uma tertúlia cor-de-rosa ou conversas de quintal.
Há uma preocupação generalizada com o futuro das nossas crianças, que já não brincam na rua e só vêem televisão. Eu sinto uma preocupação particular com o passado dos nossos adultos, que andavam a tocar às campainhas e a correr pela rua fora, em vez de estarem a ver "Os Principais", com o Humberto Bernardo.
Se não houvesse televisão eu além de profundamente triste, era hoje desempregada.
E o pior é que enquanto estivesse em casa à espera de um telefonema do centro de emprego e a comer bolachas com pepitas de chocolate (é assim que imagino o desemprego) não ia poder ver televisão!