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Monstro Bolero

Monstro Bolero

24
Jul11

O ano dos avós

Joan@

Parece que agora a 26 de Julho comemora-se o Dia dos Avós. Se discordo? Claro que discordo. Acho que ninguém merece ter um "dia internacional". Nem as mães, nem as mulheres, nem os pais, nem as crianças. Porque a criação de um dia internacional de seja o que for abre sempre uma nova oportunidade para se imprimirem milhares de postais foleiros com ursinhos a segurar ramos de rosas, e esse desperdício de papel faz um mal incrível ao ambiente. Sobretudo ao ambiente circundante a montras de papelarias. Acho que é um ultraje os avós terem um dia. Os avós merecem ter um mês inteiro. Mas Julho é melhor não, que faz demasiado calor para quem é avô... é melhor um Dezembro, em que o calor passa a chamar-se quentinho e sabe bem, debaixo das mantas onde se assiste àquele programa muito jeitoso no primeiro canal (os avós são os únicos para quem existe primeiro canal e não RTP). Aliás, acho que deviamos ir mais longe e dar aos avós um ano inteiro. Vários anos inteiros. Todos os anos que tivermos em comum com eles. Acho que é a maior das injustiças do mundo (maior do que termos perdido com a França por causa duma mãozinha inocente do Abel Xavier): termos direito a tão pouco tempo de vida em simultâneo com os avós. Para quê este desencontro? Os avós, que normalmente acreditam sempre em Deus, deviam perguntar-lhe como é que calculou isto tão mal... Avô e neto é a aliança mais antiga e frutífera de sempre. Muito melhor que aquela que supostamente une Portugal e Inglaterra. Os avós têm tudo para ensinar, muito mais tempo e paciência que os pais para o fazer, e sobretudo, métodos de ensino muito mais recomendáveis. Com cada aprendizagem, e sem pagar mais por isso, vem sempre uma fatia de salame de chocolate ou um pão com manteiga e compota.

"Velhos são os trapos", diz a minha avó. E tem razão. A minha avó é mais nova do que eu. Em todo o lado, menos no bilhete de identidade, infelizmente. A minha avó deita-se tarde e a más horas, acorda ao meio-dia, raramente tem fome para almoçar mas tem sempre espaço para uma guloseima, a minha avó ficou de me dar um livro de receitas e entregou-mo com umas quantas por preencher, como os miúdos que a meio da tarde se fartam de fazer o TPC e têm esperança que a "stora" não note, a minha avó acha que está velhíssima por já não conseguir ler sem óculos (eu acho que leio com óculos desde que ela me levava ao cinema para vermos a Pocahontas). A minha avó é uma adolescente que por azar tem 86 anos.

"A idade é um posto" - outro clássico dos "adágios sobre a terceira idade" (deixo de fora desta gama os iogurtes Adágio com propriedades  preventivas da osteoporose). E só tenho pena que o meu avô não tenha tido oportunidade de ocupar durante mais anos esse posto que era seu por direito. No dia do funeral do meu avô, tinha eu uns doze anos, tive uma alucinação. Uma miragem. Sem recurso a qualquer tipo de droga. Na altura - como hoje - o único estupefacciente que tomava era Zirtec, para as alergias. No dia do funeral, vi uma pessoa igual ao meu avô, no principal jardim de Almeirim. E chamei a minha mãe para ver, apontei, insisti que era ele. Aproximei-me ainda um pouco. Não era. Provavelmente não era sequer parecido. Mas eu queria tanto que fosse o meu avô, que tivesse sido tudo um grande e desagradável engano, que cancelássemos o enterro e fossemos todos almoçar uma sopinha da pedra, que durante escassos segundos tive aquela alegria de poder vê-lo uma última vez.

Eu gosto de acreditar no impossível. Seja por um segundo ou por anos a fio. Eu acredito que a minha avó é imortal. Que um Manoel de Oliveira não lhe chega aos calcanhares. Ele viverá até uns frondosos 110 anos, a minha avó vai durar mais que toda a família. E quando escrevo isto apercebo-me a cada tecla do pouco sentido que faz esta previsão. Mas sou como um sportinguista que diz esperançado que para o ano é que é, "vamos ganhar a liga dos campeões" ("mesmo sem estarmos apurados"), e só admitirei que estou errada no dia em que o Universo me provar o contrário. Enquanto a prova não vem, temos a felicidade de não virmos com prazo de validade e dessa incerteza nos dotar daquela urgência de estarmos juntos. De almoçar em família todos os domingos. De recordar tempos antigos em fotografias, enquanto as figuras que nelas habitam ainda cá estão para contar o que se passou por trás da objectiva nesse dia. De planear tempos futuros.

Por azar, ou por sorte, ou por acaso ou por qualquer outra coisa, tive avós praticamente inexistentes de um dos lados da família, mas para compensar tive direito a duas avós de um lado só. Uma tia-avó, que de tia tem muito pouco e de avó tem todas as partes boas e nenhuma das más. Não traz incluido o pack pessimismo, dor ciática e "no meu tempo é que era". Porque este ainda é, felizmente, o tempo dela. E aproveita-o melhor que todos nós, seja em viagens constantes pelo mundo ou em aulas de tai-chi.

Gostar de criancinhas é fácil. Num bebé tudo é amoroso, até o ranho (não partilho desta opinião, mas acredito que sou uma minoria). Mas quando os anos passam e chega a altura de se calhar ter de usar fraldas novamente, isso já não tem nada de adorável e ninguém quer estar por perto. Não sou especial fã de bebés. São muito engraçados e tal, mas sabemos lá o que vai sair dali. Podemos estar perante um ditador. Ou um novo Quim Bé. Ou um futuro praticante de violência doméstica. Um bebé ainda não fez nada para merecer o meu respeito (ok, bolçou depois de almoço, o que é assinalável para uma criatura tão pequena), ainda não tem provas dadas. Gostamos dele simplesmente porque existe. O que, convenhamos, é pouco. Um avô - ou avó - é um livro todo preenchido. De cima a baixo, incluindo as margens e os rodapés. Com tudo o que há de bom, e tudo o que aconteceu de mau. Gostamos deles "por causa disto" ou "apesar daquilo".

Deviamos gostar mais dos nossos avós. E dos avós dos outros. E dos avós que nunca tiveram netos, para passarem da teoria à prática.  Temos de gostar muito mais. Todos os dias, todos os meses, todos os anos. Mesmo quando eles já tiverem provado que não são imortais e nós tivermos experimentado o mesmo sentimento de desilusão - e dores no corpo todo - do primeiro homem que tentou voar com umas asinhas artesanais e bateu contra uma árvore.

 

04
Jan10

A Avó Estela

Joan@

No dia 2 de Janeiro a minha avó faz anos. Para nós, são 87. Para ela são "três para os 90".

 

Ela vem sempre antes de mim. Nasceu um dia (e sessenta e tal anos) antes de mim. Gosto sempre mais do dia 2 do que do 3, porque a minha festa ainda está para vir. Estamos só a dar o mote. Ainda não há o cheiro a velas apagadas por um ano inteiro, ainda não há os convidados a saírem quando nos apetecia conversar mais, ainda não há o resto do bolo , desfeito em migalhas, que vai acabar no lixo depois de um exílio no friogrífico.

Andamos ao contrário mas cruzamo-nos sempre. E paramos para tomar "o chá das cinco". Uma tradição que prometo não deixar cair em desuso. Porque nalgum dia do ano tem que se dar uso ao serviço de chá inglês, e ao açucareiro de "casquinha" (seja lá o que for esse material!).

Os meus pais sempre me disseram para ter cuidado com as companhias, com os amigos mais velhos, mas o que hei-de fazer? A minha melhor amiga tem mesmo mais 63 anos que eu. E está sempre lá para me dizer que tudo o que eu faço é bem feito. Porque há pessoas das quais não queremos a verdade rigorosa e científica, mas apenas o amor incondicional e tendencioso. Está sempre lá para se rir de todas as minhas piadas, com vontade genuína. Ouvia o programa de rádio ao domingo de manhã, vê o programa de televisão às nove da noite, mesmo quando tem coisas a queimar ao lume, leu de fio a pavio o meu livro sobre adeptos de futebol, perguntando-me a páginas tantas "quem é esta senhora?" perante um boneco do João Vieira Pinto...

Esta minha amiga, ontem, "escangalhou-me" (on her own words) o telemóvel. Tropeçou no fio quando ele estava a carregar, e deu cabo dele (que também já não ia para novo). Depois, ficou muito "ralada" com o sucedido, dizendo todo o tipo de asneiras que fazem parte do seu léxico: "merde treze" (não me perguntem porquê) e "raios partam o Padre Lino" (não me perguntem de todo porquê). Perante esta "maçada" monumental, ofereceu-se várias vezes para me pagar um telefone novo (sem sucesso, é claro), intenção compreensível, vinda de alguém que, quando peço para me passar a água nos almoços de domingo, me responde "água eu fosse, minha querida". E se lhe pedir uma fatia do cheesecake que comprou por ser o meu preferido (apesar do aniversário ser, ainda, o dela), certamente dirá "cheesecake eu fosse". A verdade é que não é todos os dias que temos gente disposta a materializar-se em comida por nós, gente que diz "ok chefe" a qualquer pedido nosso, gente que nos comprou dezenas de milhares de carteirinhas de cromos ao longo da vida, e que brincou connosco às passagens de modelos, aos ginásios e aos barcos, sempre no mesmo quarto, sempre com o mesmo cenário. Gente que puxa assim pela nossa imaginação não se encontra por aí aos pontapés.

 

Eu hoje passei o dia a receber chamadas e mensagens de gente que não sei quem é, e a lutar com um teclado gelatinoso para conseguir dar resposta a todos os "parabéns". Mas nem por um segundo consegui chatear-me com a D. Maria Estela Baptista. Nem uma pequena praga lhe roguei. É impossível. Restou-me encomendar um telemóvel novo e sorrir, abanando a cabeça como quem diz outra frase típica dela: "isto só visto, que contado não tem graça".

 

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