Aspiração ao banal
Quando estamos doentes, por mais insignificante que seja a doença (e felizmente não sou diplomada para falar de doenças sérias e graves, e espero nunca conseguir tirar essa pós-graduação), de repente as coisas mais enfadonhas do mundo tornam-se nos nossos desejos mais profundos. Noutro dia, a caminho duma consulta, olhava pela janela e tinha inveja genuína de todas as coisas absolutamente banais que as pessoas faziam na rua. De repente levar o carro à revisão pareceu-me um programa espectacular (mesmo que fosse diagnosticada uma doença gravíssima ao meu automóvel, antes ele que eu), estar na mercearia a escolher as melhores pêras rocha, ou até mesmo trabalhar na própria mercearia (tendo 80 anos e escassez de dentes, como a senhora), conduzir um táxi (e ter bigode), acartar com bilhas de gás às costas ou distribuir a Dica da Semana, tudo isso me pareciam alternativas espectaculares. Todas aquelas vidas me pareciam muito melhores que a minha, naquele dia, àquela hora. Felizmente estava sem tempo para trocar de personalidade com aquelas pessoas. Foi o melhor que fiz, porque agora que termina (acho eu) o calvário de exames e de ingestão de sopa de cenoura e frutinha cozida, parecia-me pouco razoável a troca (se bem que a distribuição da Dica da Semana ainda faz o meu coração balançar... é que parecendo que não, é uma profissão que permite conhecer os cozinhados do chefe Hernani Ermida antes de toda a gente, e saber se nessa semana o Lidl tem máquinas de pão em promoção). A conclusão a tirar disto (além de que ingestão de pêras cozidas a longo prazo pode provocar delírio), é que quando estamos saudáveis sonhamos alcançar as coisas mais absurdas: conseguir os mínimos para os jogos olímpicos de Londres, passar um mês nas Bahamas, ganhar o Euromilhões, ir jantar ao melhor restaurante do mundo... Ao mínimo sinal de doença, tudo aquilo a que aspiramos é banal, e de repente uma tosta mista afigura-se-nos como o único prato gourmet da humanidade.